Espuma dos dias — Terá Rumsfeld ressuscitado? Por Carlos Branco

Seleção de Francisco Tavares

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Terá Rumsfeld ressuscitado?

 Por Carlos Branco

Publicado por  em 21 de Fevereiro de 2023 (original aqui)

 

A importância que a Administração Biden tem vindo a atribuir a Varsóvia sugere a intenção de aprofundar o projeto da “Nova Europa” proclamado por Rumsfeld há duas décadas, em detrimento das relações com os dirigentes da “Velha Europa”.

Embora não tenha sido o falecido Secretário de Defesa norte-americano Donald Rumsfeld o autor da expressão “Velha Europa”, foi ele quem a popularizou, no ido ano de 2003, quando procurava apoios internacionais para legitimar a invasão do Iraque, ao referir-se à oposição da Alemanha e da França a essa grosseira violação do Direito Internacional, que não lhe faltaram nos países do antecedente pertencentes à União Soviética ou ao bloco de Leste.

Afinal não havia uma, mas sim duas Europas. Uma “velha” e esclerótica, que jazia no Ocidente da península europeia e uma “nova” diligente, e cheia de energia situada a Oriente, manobrável sem restrições pelos EUA contra a Rússia, à cabeça da qual se encontrava a Polónia.

Dizia Rumsfeld que o centro de gravidade da NATO na Europa se tinha deslocado para Leste, onde “há muitos membros novos. O que vemos ao pegar na lista dos membros da NATO e dos que foram recentemente convidados? Vinte e seis, algo assim? A Alemanha tem sido um problema, a França tem sido um problema”. Rumsfeld terá mesmo chegado a dizer que estes países não eram importantes.

Biden está esta semana na Europa. Vai permanecer dois dias na Polónia, depois de uma visita surpresa a Kiev, onde estão previstas reuniões com o Grupo “Bucharest Nine”, uma organização informal fundada a 4 de novembro de 2015, em Bucareste, pelos presidentes da Roménia e da Polónia, que integra a Bulgária, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia e Eslováquia. Ou, se quisermos, a “Nova Europa”.

Surpreendentemente, não se encontram previstos na agenda encontros com outros dirigentes europeus, nomeadamente franceses, alemães ou pertencentes às instituições europeias, nomeadamente da Comissão Europeia. Já em março de 2022, Biden tinha estado em Varsóvia.

A estratégia promovida por Washington de dividir a Europa em duas Europas passa por alimentar o revanchismo polaco, assim como as suas ambições geoestratégicas. Nesta senda, a Polónia tornar-se-á brevemente numa potência militar incontornável. As forças armadas polacas estão a modernizar-se a um ritmo estonteante. O orçamento de Defesa deverá chegar brevemente aos 4% do PIB. Varsóvia pretende criar o maior exército da Europa: 300 mil soldados contra os atuais 114 mil. “A Polónia tem aproximadamente três vezes mais carros de combate do que o Reino Unido (647 vs. 227) e encomendou centenas de carros de combate Abrams aos EUA e cerca de mil K2 à Coreia do Sul”.

A importância que a Administração Biden tem vindo a atribuir a Varsóvia sugere a intenção de aprofundar o projeto da “Nova Europa” proclamado por Rumsfeld há duas décadas, privilegiando as relações com a Polónia em detrimento das relações com os dirigentes da “Velha Europa”.

Com a guerra na Ucrânia, a ambição de autonomia estratégica europeia desvaneceu-se. A Europa deixou de ser percebida por Washington como um competidor geoestratégico e, consequentemente, como um “perigo”, tendo como alvos preferenciais a Alemanha e a França, por esta ordem. Por outras palavras, o eixo franco-alemão, ou, se quisermos, a “Velha Europa” perdeu relevância política e estratégica.

Há quem defenda ter sido a destruição dos Nord Stream (casus beli?!) o toque de finados no projeto europeu. Sem menosprezar a relevância geoestratégica do acontecimento, argumento que a maior ameaça ao aprofundamento do projeto europeu tem sido o apoio prestado por Washington às aspirações hegemónicas de Varsóvia, influenciadas pelas ideias do general Jozef Pilsudski [1], ou seja, à afirmação da “Nova Europa”.

O crescendo de arrogância e sobranceria de Varsóvia no relacionamento com Berlim é claro e evidente, por exemplo, na exigência de reparações de guerra no valor de 1,3 triliões de euros, ou nos termos diplomaticamente pouco elegantes como pressionou a Alemanha a autorizar a libertação de carros de combate para a Ucrânia.

A NATO e a União Europeia (UE) são e continuarão a ser a primeira opção estratégica de Varsóvia. Mas a participação da Polónia nesses projetos não visa a sua consolidação, mas beneficiar deles em proveito da afirmação das suas opções geoestratégicas, como se verifica nas suas aquisições de material militar noutras latitudes que não a europeia.

Estes desenvolvimentos – Velha e Nova Europa – não auspiciam um futuro promissor para os europeus, para o que muito contribuem as lideranças europeias, de forma geral medíocres e pouco esclarecidas, como ficou patente no discurso do Alto-Representante da UE Josep Borrell na Conferência de Segurança de Munique, em que defendeu a necessidade de rever a Carta das Nações Unidas.

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Nota

[1] N. Editor: Jósef Klemens Pilsudski [1867-1935], estadista polaco, Marechal de campo, primeiro chefe de Estado (1918-1922) e ditador (1926-1935) da Segunda república Polaca e líder das suas forças armadas. É considerado o maior responsável pelo ressurgimento da Polónia quase 120 anos após sua partição pela Áustria, Prússia e Rússia em 1772-1795. A partir da metade da Primeira Guerra Mundial, até à sua morte, Piłsudski foi o mais influente político na política externa e no governo da Polónia. Após o golpe de estado de maio de 1926, ele tornou-se seu ditador de facto (Wikipedia aqui).

 


O autor: Carlos Branco é Major-general do Exército na situação de reserva, membro da direção da A25A, e investigador do IPRI-Nova.

 

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